"Uma pessoa se faz revolucionária não movida pelo estudo,mas por causa de uma indignação ética diante da realidade". (Merleau-Ponty).

segunda-feira, 7 de julho de 2008

a mosca azul

Segue poema de Machado de Assis! Vale ler e refletir sobre nossa vida e sobre políticos que se deparam com a mosca azul ao deterem o poder. Começa agora a campanha política, fiquemos atentos à possíveis dissecadores da mosca!


Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou so Indostão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, - melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.

Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou?
"Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que te ensinou?"

Então ela, voando, e revoando, disse:
"Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor".

E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo,
E tranquilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.

Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço.
Eu vi um rosto, que era o seu.

Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vichnu.

Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
epreguiçam sorrindo as suas graças finas,
e todo o amor que têm lhe dão.

Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de Aveztruz,
Refrescavam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.

Vinha a glória depois; - quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.

Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.

Então ele estende a mão calosa e tosca,
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.

Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.

Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nesa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta vil,
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.

Hoje, quando ele aí vai, de aloé e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.

(MACHADO DE ASSIS, "Ocidentais", in Poesias completas, 1901).

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